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1. Descrever a pobreza como a base para uma nova política de arquitectura.

2. Detalhar as tentativas da arquitectura moderna para solucionar o problema da pobreza.

3. Fornecer razões para o seu fracasso.

4. Mostrar de que forma a “arquitectura crítica” só veio piorar a situação.

5. Fazer contrastar isto com um retrato actual da pobreza.

6. Actualizar as políticas de arquitectura de Ledoux e delinear princípios de uma arquitectura que lide com condições de precariedade.

 

1. Em 1804, Claude Nicolas Ledoux publicou um tratado teórico intitulado L’Architecture considérée sous le rapport de l’art, des mœurs et de la législation. O autor era um dos arquitectos mais bem sucedidos do Ancien Régime, um amigo de Madame Dubarry (que foi executada em 1793, durante o período revolucionário), e era particularmente conhecido como o arquitecto responsável pelo Mur des Fermiers Généraux, a muralha à volta de Paris (construída em 1785-1790) que impunha o pagamento da ferme générale, um imposto, provocando ondas de descontentamento na cidade (“Le mur murant Paris rend Paris murmurant”*). Embora mais tarde se tenha tornado conhecido como o “arquitecto da revolução”, a revolução apenas trouxe infelicidade à sua vida. Em 1793, foi preso e condenado. Na prisão, decidiu publicar os desenhos dos seus edifícios e projectos, organizando espécie de enciclopédia da arquitectura. Depois de ter sido inesperadamente libertado, em Janeiro de 1795, teve tempo suficiente para realizar pelo menos uma parte desse ambicioso projecto.

No seu livro, Ledoux lidou com a totalidade do espectro da cons-trução – das casas simples dos pobres, ao público Templo das Virtudes e ao principesco pavilhão de caça. As Salinas Reais, em Arc-et-Senans, cons-truídas entre 1773 e 1778, constituem o projecto mais significativo. Na versão publicada, o volume foi alargado, incluindo a localidade rural para a qual Ledoux concebeu igualmente vários edifícios públicos e residências particulares, destinadas a todas as classes sociais. Um elemento vital neste processo foi a teoria económica proposta pelos fisiocratas, que acreditavam que a natureza era a única fonte de todo o excedente. Baseado nesta teoria, Ledoux desenvolveu um interesse obsessivo em conceber habitações para o sector mais produtivo da população, que era simultaneamente o mais pobre. Os seus projectos, que incluíram casas para um tanoeiro, um lenhador e um carvoeiro (estampas 88, 102, 109) são famosos. No seu todo, as estampas do conjunto dos seus projectos, tanto as dos que foram construídos como as dos que o não foram, formam uma utopia arquitectónica que não estabelece, porém, um destino ideal distante, uma estação terminal, mas antes a paragem imediatamente seguinte, que podia ser criada com base no património até então construído.

Para melhor compreender as teorias de Ledoux, a estampa nº 33 é de especial importância. Trata-se da única estampa que não está directamente relacionada com nenhum projecto de arquitectura: mostra um homem que encontrou abrigo sob a única árvore existente numa ilha deserta; nu, de mãos vazias, contempla os céus, onde os deuses reunidos não lhe prestam qualquer atenção. Ledoux intitulou a cena “O abrigo do pobre” (“L’abri du pauvre”). No comentário à ilustração, refere-se ao Universo como “a casa do pobre” (“la maison du pauvre”) que foi já devidamente contemplado pela natureza.1 Comparado com ele, argumenta, o homem rico não possui nada de valor equivalente. Ledoux defende que temos uma falsa impressão da pobreza ao acreditarmos que os pobres não têm nada. Em última análise, ao pobre falta apenas o excedente, que ele obtém da natureza para os outros, através do seu trabalho. Em consequência, a missão do arquitecto – que Ledoux entendia como o sucessor do Deus Criador – é intervir na distribuição de bens, regulando-a, e assim permitindo que o pobre partilhe dos bens excedentários.

Ao contrário das lendas a respeito da origem da arquitectura, segundo Vitrúvio, Alberti, Laugier ou Semper, a versão de Ledoux não se interessa pela inventariação de um cânone de formas arquitectónicas aceite por todos. A origem da arquitectura não se transforma no início de um processo contínuo de aperfei-çoamento da natureza. Quanto mais se avançar nessa direcção, mais se restringe a arquitectura – de acordo com a teoria de Ledoux – aos requisitos específicos dos ricos e poderosos (125). Pelo contrário, ele vê a natu-reza, na sua totalidade, como a verdadeira fonte da arquitectura. A partir da natureza, o arquitecto devia desenvolver a “diversidade dos seus temas”, como de um grande livro aberto se tratasse (86). A diversidade dos recursos naturais dá origem a uma diversidade formal na arquitectura, cujo desenvolvimento Ledoux acredita ser uma questão pública de importância vital.

Nessa busca, Ledoux regressa repetidamente ao problema da pobreza. Dá ênfase à ideia de que os pobres têm o mesmo direito à arquitectura que os ricos. A arquitectura, escreve Ledoux, não deixa de ser arquitectura quando confrontada com as casas dos pobres. Mesmo se as ordens clássicas não são apropriadas (198), as casas dos pobres têm de ser construídas com arte (210), em especial quando a arte nada custa, ao estar associada ao valor humano e não aos valores materiais (105). Em resultado disso, os contrastes entre edifícios acabarão por aumentar e será possível evitar a entediante uniformidade (178). Assim, a “casa do pobre” colocou Ledoux numa nova situação enquanto arquitecto. Deixou de ser o copista da natureza, tal como entendido na teoria clássica da arquitectura. Em lugar disso, assumiu um papel activo no desenvolvimento de novas forças económicas e sociais necessárias para processar os recursos naturais (34). Uma nova teoria estética tem origem no problema da pobreza – uma teoria mais performativa que representativa, mais dirigida para o desenvolvimento de possibilidades de acção do que para a representação de significados.

2. “Guerra à pobreza” foi também o slôgane da arquitectura avant-garde, no século XX. Contudo, a redescoberta de Ledoux chegou demasiado tarde para poder ter sido relevante. Para além disso, a aparência exterior da pobre-za mudara. Os pobres do século XX não são já aqueles pobres rurais a quem falta “somente” a abundância. Os netos urbanos do pobre rural debatem-se, predominantemente, com a falta de dinheiro para comprar comida e pagar a renda de um apartamento miserável num prédio decrépito. Consequente-mente, Sigfried Giedion, o secretário-geral do Congresso Internacional de Arquitectura Moderna (Congrès International d’Architecture Moderne, CIAM), referiu-se à “habitação para aqueles que estão abaixo da linha da pobreza” (“Die Wohnung für das Existenzminimum”) como o mais importante desafio para a arquitectura no início do século XX.2 Conseguiu igualmente fazer com que o assunto fosse tema da muito discutida segunda reunião do CIAM, realizada em Frankfurt, em 1929.

No segundo congresso, foi possível observar que a luta contra a pobreza dividira os arquitectos vanguardistas em dois campos. Um dos lados via a arquitectura como nada mais que uma continuação da política, por outros meios. Para esse campo, a arquitectura tornava-se importante precisamente na altura em que todos os métodos políticos tinham falhado. Se a moder-nização da arquitectura fosse bem sucedida, de acordo com a teoria, os problemas da pobreza resolver-se-iam automaticamente. Estes devaneios eram típicos de Le Corbusier que, no seu manifesto Vers une Architecture,3 publicado em 1922, oferecera já ao mundo a opção entre “arquitectura ou revolução”, acrescentando, sem grande subtileza, a sugestão: “A revolução pode ser evitada.”

No entanto, outros estavam convencidos de que era preferível evitar a arquitectura. Para Hans Schmidt, um arquitecto conhecido pelas suas posições políticas radicais, a arquitectura representava apenas um problema de forma que não era necessário à sobrevivência. Das Bauen ist nicht Architektur (Construção não é arquitectura) era o título característico de um dos seus textos, no qual colocava a responsabilidade social do arquitecto acima da concepção formal. Distanciando-se significativamente da posição de Le Corbusier e seus seguidores, apelou a que o “reconhecimento claro das nossas tarefas” fosse considerado mais importante “que alcançar uma nova percepção estética”.4

Embora o iv CIAM, que teve lugar em 1933, a bordo do SS Patris 2 em trânsito de Marselha para Atenas, não tenha resolvido totalmente as divergências entre os dois campos, levou a uma doutrina conjunta, que Le Corbusier publicou anonimamente dez anos mais tarde, sob o título La charte d’Athènes.5 O seu tema é “a cidade funcional” e o seu principal objectivo é o desenvolvimento de um método racional, de orientação técnica, para lidar de forma mais eficaz com os “sintomas alarmantes”6, que podiam ser detectados em meios urbanos pelo mundo inteiro. Neste contexto, a Carta contém uma longa lista de falhas encontradas na construção de cidades, com sugestões apropriadas de formas de as resolver, incluindo a proposta de criar zonas funcionalmente separadas para habitação, trabalho, lazer e transportes.

Na segunda metade do século XX, a Carta tornou-se o guia mais importante para os arquitectos no combate à pobreza. A reconstrução de cidades destruídas pela guerra, por um lado, e o desenvolvimento de novos complexos habitacionais nos limites das cidades em rápida expansão, por outro, ofereciam a oportunidade de um novo começo, única na história da arquitectura. Partiu-se do princípio de que o problema da pobreza residia no passado e, em breve, seria erradicado de uma vez por todas através da total implementação das sugestões contidas na Carta – e, particularmente, através da criação de áreas separadas por funções para a cidade. Porém, mais tarde, tornou-se notório que, com esta abordagem, os arquitectos modernos criaram ainda mais problemas, ao invés de solucionarem o problema original.

 

3. Bruno Taut já criticara as conclusões do ii CIAM, em Frankfurt, a este propósito, porque as plantas minimalistas excluíam a possibilidade de subalugar quartos individuais a “hóspedes”, como era costume nos prédios de apartamentos. No entanto, a verdadeira noção da inaptidão da arquitectura Moderna para fazer face aos problemas da pobreza só se tornou aparente após a Segunda Guerra Mundial, quando a arquitectura Moderna já se tornara o estilo dominante de construção. Jane Jacobs, em Tod und Leben großer amerikanischer Städte7 e Alexander Mitscherlich, em Die Unwirtlichkeit unserer Städte: Anstiftung zum Unfrieden8 foram os primeiros a censurar os arquitectos pela sua obediência cega à Carta de Atenas. Como apontaram Jacobs e Mitscherlich, as suas propostas devem inevitavelmente ter contribuído para a segregação social e o desalojamento dos mais pobres. Como tal, os grandes complexos de habitação social eram vistos como ofensivas arquitectónicas que tinham os pobres, e não a pobreza, como principal alvo.

A demolição do complexo de habitação social Pruitt-Igoe, em St. Louis, que teve início às 15 horas de 16 de Março de 1972, equivaleu a uma declaração pública de bancarrota da arquitectura Moderna.9 Simultaneamente, proclamou o começo do período pós-moderno.10 Um exemplo premiado de habitação social revelara-se um verdadeiro berço para a criminalidade. A demolição pôs a descoberto um segredo da arquitectura Moderna: na sua essência, não era compatível com as necessidades dos pobres, e, na verdade, geralmente opunha-se às suas estruturas sociais e economias informais.

Hoje, o espectro de Pruitt-Igoe continua a perseguir-nos. Quaisquer que sejam as razões para o aparecimento de cada caso individual, podemos sempre encontrar, entre elas, a pobreza.11 Tornou-se comum referir o agudizar dos conflitos sociais nos bidonvilles como “guerra”. Os esquálidos apartamentos em betão que ali se encontram apenas escaparam ao destino de Pruitt-Igoe porque, actualmente, a resposta preferida aos problemas é pôr em marcha medidas policiais e não medidas de arquitectura. Contudo, quando confrontados desta maneira com a sua inquietante impotência, os arquitectos voltaram-se para o lado mais bem sucedido da sua actividade: a forma.

 

4. A admissão de impotência ofereceu à vanguarda da arquitectura uma forma de se retirar dos conflitos sócio-políticos. No “boudoir” – isto é, na atmosfera íntima na qual a arquitectura era considerada pura forma– os compromissos sócio-políticos foram abandonados.12 Partindo desta posição, o pouco que poderia ser feito pelos pobres era contrariar as imposições indecorosas dos investidores com as condições inerentes à forma. A “arquitectura crítica”, neste sentido, expressava-se por sinais mais que por acções, em diferenças formais mais que em alternativas específicas.13 O “boudoir” revelou ser um laboratório extremamente eficiente para a produção de diferenças formais. Ao longo das duas últimas décadas do século XX, permitiu aos arquitectos alcançar os limites da sua imaginação, e ultrapassá-los. Modelos impressionantes de edifícios com forma de fendas glaciares parcialmente derretidas, ou estruturas matrizes de pedra artificial constituíram as atracções principais em todas as exposições de arquitectura. Quanto maior fosse o espectáculo da forma, mais herméticas eram as teorias destinadas a transmitir-lhe significância crítica.

No entanto, fora do “boudoir” não havia sinais evidentes da performance crítica do espectáculo. Pelo contrário: as “diferenças formais” tornaram-se a imagem de marca das companhias globais. O que é que existe de “crítico” em formas que possuem comprovados “efeitos laterais” estimulantes, tais como o “efeito Bilbau” ou o “urbanismo Viagra”? À medida que o desejo de diferenças formais aumentou, até assumir proporções insaciáveis no mundo inteiro, mais se tornou impossível refutar o facto de que a “arquitectura crítica” assumiu, a este respeito, o papel de um importante fornecedor de edifício-ícones. A crítica era, de facto, na-da mais do que uma imitação da arquitectura com vista à autopreservação, alinhada com as condições neoliberais da nova ordem mundial. Em última análise, o “projecto crítico” tornou-se completamente afirmativo, sem que ninguém tenha expressado reservas a esta transformação. (Mesmo a crítica à “arquitectura crítica” falha o alvo, ao centrar-se apenas na camuflagem crítica, e não no papel afirmativo propriamente dito.)14 Uma aliança de vontades forjou-se a partir das relações informais entre arquitectos do “boudoir”. Os mais críticos entre os arquitectos do “boudoir”, tais como Coop Himmelb(l)au, Peter Eisenman, Frank Gehry, Zaha Hadid, Daniel Libeskind e Bernard Tschumi encontram-se agora entre os mais extravagantes arquitectos do espectáculo.

Por um lado, a arquitectura do espectáculo simboliza a superioridade cultural, económica e técnica do mundo desenvolvido. (“Construam algo de que nos sintamos orgulhosos”, disse o Presidente dos Estados Unidos, G. W. Bush, aos projectistas do novo World Trade Center, em Nova Iorque.) Por outro lado, representa a guerra que este mundo tem vindo a travar com uma grande parte da sua população. A construção de espectaculares arranha-céus, centros comerciais, condomínios fechados, Disneylândias, templos da cultura e instalações desportivas é geralmente confiada a empresas privadas, desligadas do contexto local, que se apropriam apenas do que precisam da comunidade. Não há restrições ao controlo público e à avidez privada. Pode ter-se tudo, mas nada é para todos. Todos os elementos disruptivos são excluídos. A entrada é apenas permitida a um público submisso e com meios de pagamento, os restantes têm de ficar no exterior. Apesar disto, estes santuários para os privilegiados dão origem a custos significativos em termos de infra-estrutura, segurança e manutenção, que têm de ser suportados por dinheiros públicos. Como tal, fundos que poderiam ter sido utilizados para cuidados médicos, educação e habitação para os pobres não se encontram disponíveis. Para além disso, os investimentos em construções espectaculares servem várias vezes como fortes argumentos para a renovação de bairros degradados. São feitas promessas de que a situação dos pobres será melhorada, mas aquilo que está na realidade sobre a mesa é quase sempre apenas “um cocktail pouco salutar de subestimação dos custos, sobrestimação dos lucros, impactos ambientais subvalorizados e efeitos no desenvolvimento económico sobrevalorizados”.15 A história dos desalojamentos provocados pela arquitectura ainda não foi escrita. A lista de Mike Davis, contendo “alguns dos mais conhecidos despejos de bairros degradados” causados pelo melhoramento urbano, confirma a suspeita de que muitas maravilhas da arquitectura escondem uma história negra e menos conhecida.16 O facto de muitos destes edifícios espectaculares terem sido construídos em zonas com uma proporção de pessoas pobres e desempregadas superior à média, dá-nos razões para temer o pior. É bem possível que existam exemplos da arquitectura espectáculo que pertencem à lista dos crimes contra a humanidade.17

Apesar de toda a sua diferença formal e extravagância, o aspecto comum às estruturas espectaculares é a exclusão das condições precárias da sociedade. Pobreza, guerra e migração surgem apenas nas margens do espectáculo – quando não estão completamente ausentes. Os arquitectos de topo vêem estas coisas meramente como estorvos para o desenvolvimento dos poderes autopoéticos da sua imaginação. Se a arquitectura espectacular merece por isso uma outra distinção, a que melhor se lhe aplica talvez seja a de “implacável”.

 

5. A aparência exterior da pobreza mudou outra vez. Os pobres do século XXI não carecem “apenas” dos excedentes e de bases financeiras. Para além disso, e mais que tudo, têm falta de esperança. No contexto do progresso técnico-industrial, os empregos são sistematicamente destruídos. Perversamente, contudo, são precisamente as cidades cujo crescimento económico está a abrandar à taxa mais elevada que estão a crescer mais. Isto significa que a pobreza se reproduz a si própria e nem sequer oferece àqueles afectados a ilusão de que serão capazes de escapar ao círculo vicioso da “falta de emprego – falta de escolha – falta de espaço”.18

Não são apenas os grupos de risco do costume a serem afectados. Pelo contrário, uma crescente maioria da população vive agora na pobreza. Como se encontra pormenorizado no relatório da UN-HABITAT, os habitantes de bairros de lata eram, incrivelmente, mais de mil milhões em 2006.19 Nem todos os habitantes de um bairro de lata são necessariamente pobres, mas é provável que muitos pobres vivam fora dos bairros de lata. (Na Suiça, há um milhão de habitantes a viver no limiar da pobreza, mas não há bairros de lata.) O fosso entre ricos e pobres está a crescer dramaticamente tanto no primeiro como no terceiro mundo (onde fica, afinal, o segundo mundo?). Se as coisas continuarem assim, em breve não existirão cidades, apenas gigantescos bairros de lata com resorts para os ricos no seu interior. Há um medo justificado de que a pobreza urbana se possa desenvolver até se tornar uma catástrofe com uma escala semelhante ao aquecimento global – e possivelmente devido às mesmas causas.20

Contudo, estaremos a equivocar-nos no nosso julgamento da população pobre se a estigmatizarmos como uma massa supérflua e letárgica, que não pode ser integrada na sociedade. Na realidade, os pobres constituem ainda o pistão da nossa sociedade, embora sejam quem menos beneficia da rotação do motor. O seu conhecimento é infinitamente mais criativo, diverso e produtivo que todo o conhecimento guardado nas instituições académicas e tratado como propriedade privada pelas corporações globais. A economia informal assemelha-se a uma gigantesca oferta de código aberto que alimenta em boa parte a economia formal.

Em si mesma, a sobrevivência nas camadas mais baixas da sociedade representa uma obra de arte que não pode ser explicada por observadores académicos. Referindo-se a Lagos, a capital da Nigéria, que tem 15 milhões de habitantes – sete milhões dos quais a viver em bairros de lata, de acordo com os números oficiais –, o arquitecto holandês Rem Koolhaas afirmou: “A impressão que a cidade deixa é a de um espaço de vida extremamente pobre, que é, contudo, muito rico em inteligência e criatividade e que – através de uma mistura de optimismo e improvisação – consegue fazer face a situações complexas de uma forma incrivelmente produtiva.”21 Sem glorificar a luta informal pela sobrevivência, pode notar-se que a falta crónica de tudo gera uma diversidade de formas de existência que permitem aos pobres sobreviver. Pelo menos neste respeito, o mundo dos pobres está em vantagem. A pobreza força as pessoas a adaptarem-se mais rapidamente a uma nova situação e a mudança provoca menos stresse aos pobres que à população em geral.22

Mesmo no mundo desenvolvido, já houve tempos em que as condições precárias não eram necessariamente vistas como perigos. Na base da Estátua da Liberdade, em Nova Iorque, há uma placa com um soneto de Emma Lazarus, onde podem ler-se estes versos:

 

“Keep ancient lands, your storied pomp!” cries she

With silent lips. “Give me your tired, your poor,

Your huddled masses yearning to breathe free,

The wretched refuse of your teeming shore

Send these, the homeless, tempest-tossed to me,

I  lift my lamp beside the golden door!” 23

 

O país evocado neste poema não se avista actualmente. Para além disso, há uma esmagadora ausência de abordagens à arquitectura que façam face às necessidades das massas subjugadas do presente, e reconheçam os bairros de lata como melhores laboratórios para uma futura arquitectura que os “boudoirs”.24 Apesar de tudo, deve entender-se que existem muitos arquitectos que se dedicam aos problemas de construção encontrados pelos pobres; há uma longa tradição de construção informal que é responsável pela maioria das estruturas edificadas do mundo; há muitos programas de auxílio e auto-ajuda; alguns arquitectos construíram mesmo a sua reputação nesta área, incluindo o Atelier Bow-Wow, Shigeru Ban, Yona Friedman, Rem Koolhaas, Lacaton & Vassal, Cameron Sinclair, Álvaro Siza e Lebbeus Woods. As suas soluções são geralmente baseadas nas soluções dos próprios pobres, já que os pobres são quem melhor sabe como contornar dificuldades. No entanto, estes programas não deixarão de ser uma gota no oceano enquanto continuarmos a distinguir a arquitectura dos pobres da arquitectura dos ricos. A pobreza atingiu dimensões que a tornam um problema universal. É um assunto público que nos une a todos e ao qual a arquitectura, enquanto forma coerente de pensamento e acção, se deve adaptar – de modo semelhante à forma como Ledoux mudou a face da arquitectura no século XVIII.

6. Seria errado voltar a recorrer à fórmula científica do Modernismo: a modernização traria apenas uma avalanche de Pruitt-Igoes. Entretanto, seria igualmente incorrecto apontar o dedo e recordar aos arquitectos do espectáculo os seus deveres: apelos morais não fariam nada pelos desfavorecidos e aumentariam apenas o apetite pela natureza desumana do espectáculo. Em vez disso, devemos pôr em questão toda a estética da arquitectura do espectáculo, bem como as teorias que surgiram em seu redor. Está claro que não podemos considerar a arquitectura responsável pelas intenções que alguém persegue em seu nome. Contudo, se a arquitectura prestar apenas atenção aos interesses de alguns e negligenciar as necessidades de um largo sector da população – em breve a sua maioria –, então termos realmente justificação para questionar a lógica, “o calibre e a qualidade”25 dessa arquitectura. Nesse caso, a arquitectura tornou-se vítima da sua própria estética. Como tal, a arquitectura já não é algo num plano elevado – uma espiritualização da construção. Pelo contrário, vai exactamente contra aquilo que podia alcançar– construir o mundo com uma base mais humana. De um ponto de vista estético, a arquitectura do espectáculo no Dubai, em Guadalajara, Kuala Lumpur, São Petersburgo e em tantos outros lugares, é pior que as mais feias casas pré-fabricadas de um subúrbio lúgubre. Constitui um dos maiores colapsos na história da arquitectura. Pode apenas ser descrita como parte de um processo de colonização do interior, que usa a arquitectura como um dos seus mais eficazes sistemas bélicos.

Aquilo que precisamos é, então, de um tipo de pensamento estético – um pensamento que não tente abafar as condições precárias com o tumulto que rodeia a sua forma espectacular. Se pretendermos fazer alguma coisa para impedir que o estado de guerra nas cidades piore e para combater o aumento da pobreza, então talvez as nossas acções se devam basear nos princípios de Ledoux. Da mesma forma que ele usou as condições precárias da sua época como ponto de partida no seu trabalho, os arquitectos de hoje deviam ser encorajados a desenvolver as suas tácticas e recursos estéticos para combater a precariedade actual.

 

O que pode ser feito?

1. Montar palcos – tal como Ledoux montou palcos para um público que ainda espera nos bastidores. Nos seus projectos para os pobres, rejeitou todos os tipos de arquitectura representativa e, em seu lugar, encenou um teatro da produção. Muitos decidiram ver uma mobilização de massas protofascista nesta estilização do político. Contudo, na realidade trata-se de algo totalmente diferente, algo que é vital tendo em conta a exclusão da maioria da população. A arquitectura tem de se envolver na política, não para suportar programas políticos, mas antes para incorporar o seu potencial na discussão, ser vista e ter uma voz pública. O que importa aqui é mobilizar as massas, fazê-las sair dos cantos sombrios, na direcção da luz da exposição pública. Como escreve Jacques Rancière em The Politics of Aesthetics: “O real tem de ser ficcionado para poder ser pensado.”26 A arquitectura, neste contexto, é um meio de desafiar a ordem social dominante em nome da maioria excluída. Em vez de obstruir o espaço público com arquitectura espectacular, como de costume, devem ser desenvolvidos projectos que dêem às massas espaço para respirar em liberdade. O regime estético da arquitectura do espectáculo deve dar lugar a um outro regime estético que seja capaz de reequilibrar a divisão do espaço que tem sido praticada.

2. Usar a noção de menos – tal como Ledoux, que se inspirou no trabalho dos madeireiros, guardas-florestais e carvoeiros para descobrir uma nova expressão da arquitectura. A arquitectura que abraça a noção de menos é uma “arquitectura menor” no sentido proposto por Deleuze e Guattari, que se referiram a uma “literatura menor”.27 Esta arquitectura não é menor devido à sua escala, mas antes porque renuncia às principais funções representativas da arquitectura ao serviço da ordem política vigente e das companhias globais. Uma arquitectura menor expressa-se nas línguas de alto nível da arquitectura – seja ela clássica ou high-tech – mas fá-lo de forma mais pobre, como se usasse uma língua estrangeira. Ao invés de ser a mais ele-vada “expressão da imagem que uma socieda-de tem de si própria”,28 forja os instrumentos para uma outra cons-ciência e uma outra sensibilidade. Está mais próxima da construção convencional e, como esta, é performativa em vez de ser representativa. Busca satisfazer as necessidades, em vez de chamar a atenção para a magnitude com que foram satisfeitas. A performance da arquitectura menor está para a corrente principal da arquitectura, um pouco como uma ordem que permanece na sombra está para a ordem dominante. Entendida desta forma, a arquitectura menor é um desafio à ordem estabelecida. É como uma dança em que os pares são o pensamento social e o conhecimento ratificado. A perfeição é boa para os funcionários públicos e os artesãos, mas para os arquitectos o importante é desenvolver o potencial de uma sociedade, “fazê-la dançar” – aqui e agora.

3. Pensar de forma utópica – tal como Ledoux, para quem a utopia não era nenhuma espécie de destino final, mas antes a próxima paragem no caminho, que podemos alcançar directamente a seguir àquela onde nos encontramos. O projecto Chaux não propõe nenhum paraíso eterno do qual todos os problemas sociais seriam erradicados. A sua abordagem pragmática ao pensamento utópico aproxima-se daquilo que Fredric Jameson descreve como “um comboio de brincar da mente”.29 O teórico americano afirma que devíamos pensar em “oficinas de garagem, ferramentas, Lego, em consertar, remendar e juntar todo o tipo de coisas”. Através deste processo, quebra-se a crosta dura do pensamento existente. Somos tentados a mudar uma coisa aqui, a tentar algo diferente ali, não sendo precisamente claro, à partida, se vamos ser bem sucedidos; tentamos, e se falhar, tentamos outra vez. Um espírito utópico, bem como um pragmático, usam a realidade como fonte de inspiração para produzir algo novo. Ambos se encontram escondidos nas margens da realidade banal e podem apenas ser por vezes entrevistos, por entre a névoa do quotidiano. Contudo, precisamente por causa do seu carácter informal, estão mais próximos da esperança das pessoas num mundo melhor, do que qualquer arquitectura espectacular, por mais fabulosa que seja, já que, em última análise, esta bloqueia todas as oportunidades em favor de uma única possibilidade – que frequentemente se verifica, mais tarde, ser a pior.| 

 

TRADUÇÃO (DO INGLÊS) DE JOÃO CARVALHAIS

 

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Texto publicado originalmente em alemão em figurationen; Gener Literatur Kultur. Nr.1, Vol.8, 2007.

 

* “O muro que mura Paris torna Paris murmurante.”

 

1 Cf. Claude-Nicolas Ledoux. L’Architecture considérée sous le rapport de l’art, des mœurs et de la legislation. Nördlingen : Uhl, 1981, p. 104-106. (Obra ed. originalmente em 1804). Seguidamente, as referências a este volume são inseridas no texto com os números de página. 

 

2 Sigfried Giedion. Befreites Wohnen. Dorothee Huber, ed. Frankfurt am Main : Syndikat, 1985, p. 11. (Obra ed. originalmente em 1929). 

 

3 Le Corbusier. Ausblick auf eine Architektur. Braunschweig : Vieweg & Sohn, 1982. (Bauwelt-Fundamente; 2). Tít. orig. Vers une architecture (Obra ed. originalmente em 1922).

 

4 Hans Schmidt. Das Bauen ist nicht Architektur. Werk. Nº 14 (1927), p. 139-142.

 

5 [Le Corbusier]. La charte d‘Athènes. [Paris] : Plon, 1943.

 

6 José Luis Sert. Can Our Cities Survive? Cambridge, Massachusets : Harvard University Press, 1942, p. 4.

 

7 Jane Jacobs. Tod und Leben grosser amerikanischer Städte. Berlin : Ullstein, 1965. (Bauwelt Fundamente; 4). (Obra ed. originalmente em 1961).

 

8 Alexander Mitscherlich. Die Unwirtlichkeit unserer Städte, Anstiftung zum Unfrieden. Frankfurt am Main : Suhrkamp-Verlag, 1965. (Edition Suhrkamp; 123).

 

9 Colin Rowe; Fred Koetter. Collage City. Basel : Birk-häsuer, 1984, p.12. Tít. orig. Collage City. (Obra ed. originalmente em 1978).

 

10 Charles Jencks. The language of post-modern architecture. New York : Rizzoli, 1987, p. 9 (Obra ed. originalmente em 1977).

 

11 Loïc Wacquant. The return of the repressed. Monu. (Jun. 2006), p. 6-18.

 

12 Manfredo Tafuri. L’Architecture dans le boudoir: the language of criticism and the criticism of language. Oppositions. Nº 3 (1974), p. 37-62.

 

13 K. Michael Hays. Critical Architecture. Between Culture and Form. Perspecta. Nº 21 (1984), p. 14-30.

 

14 Robert Somol; Sarah Whiting. Notes around the Doppler Effect and other moods of Modernism. Perspecta.

Nº 33 (2002), p. 72-77.

 

15 United Nations Human Settlements Programme, UN-Habitat. The state of the world’s cities, 2004/2005: globalisation and urban culture. London : Earthscan, 2005, p. 5.

 

16 Mike Davis. Planet of slums. London : Verso, 2006,
p. 102-106.

 

17 Eyal Weizman. The evil architects do. In: Rem Koolhaas/ /AMOMA. Content. Koln : Taschen, 2004, p. 60-63.

 

18 Naomi Klein. No logo: no space, no choice, no jobs. London : Flamingo, 2001.

 

19 Op. cit. United Nations Human Settlements Programme, UN-Habitat, p. 16 (Cap.: The millenium development goals and urban sustainability). 

 

20 Mike Davis. Op. cit., p. 2.

 

21 Rem Koolhaas. Lagos Wide & Close. 2002. Disponível em http://www.frif.com/new2003/lag.html (Documentário vídeo, realização: Bregtie van der Haak).

 

22 Yona Friedman. Arguments for a poor world. In: Dreams and conflicts: the dictatorship of the viewer. Francesco Bonami e Maria Luisa Frisa, ed. Veneza : La Biennale di Venezia, 2003, p. 255.

 

23 Emma Lazarus. The New Colossus. In: John Hollander, ed. Selected Poems. New York : Library of America, 2005. (American poets project, 16), p. 57 (Obra ed. originalmente em 1887). [“Guardai terras antigas, a vossa pompa histórica!”, grita ela/Com lábios silenciosos. “Dai-me os vossos fatigados, os vossos pobres,/As vossas massas encurraladas, ansiosas por respirar liberdade,/A miserável ralé das vossas costas apinhadas./Mandai-me os sem-abrigo, os arremessados pelas tempestades,/Pois eu ergo o meu farol junto ao portal dourado.] 

 

24 Yona Friedman. L’architecture de survie: une philosophie de la pauverté. Paris : L’Eclat, 2003, p. 182-183.

 

25 Kurt W. Forster. Architecture: its shadows and its reflections. Metamorph/Focus. 9. International Architecture Exhibition. Veneza : Fondazione La Biennale, 2004, p. 13.

 

26 Jacques Rancière. The politics of aesthetics: the distribution of the sensible. London, New York : Continuum, 2006, p. 38. Tít. orig. Le partage du sensible: esthétique et politique. (Obra ed. originalmente em 2000).

 

27 Gilles Deleuze; Félix Guattari. Kafka: Für eine kleine Literatur. Frankfurt : Suhrkamp, 1976. 807 p. Tít. orig.: Kafka: pour une littérature mineure. (Obra ed. originalmente em 1975). 

 

28 Vittorio Magnago Lampugnani. Neue Perspektiven für den Städtebau. Tages Anzeiger. Nº 30 (Aug. 2005), p. 49.

 

29 Fredric Jameson. The politics of utopia. New Left Review. Nº 25 (2004), p. 40. (Ed. originalmente In: The language of post-modern architecture. New York : Rizzoli, 1977).

 

 


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